1. Jean Baudrillard denominou nossa época de "a sociedade do espetáculo", o que é apropriado em grande medida. As grandes personalidades são formadas e deformadas pela onipresente TV, quem não conhece os dramas de uma Vera Fischer; quem não cultua os novos ídolos Ronaldinho e Guga, consagrados no vácuo deixado pela prematura morte de Ayrton Senna "do Brasil"? Os grandes eventos históricos são aqueles televisionados para quase todos os países do mundo: a infame cobertura da guerra do Golfo, a estúpida morte de uma lady inglesa erigida em mito da solidariedade humana; o narcisismo coletivo exacerbado nas heróicas disputas por medalhas e pelo troféu nas Olimpíadas e copas do mundo. O maior fenômeno religioso neste fim de século no Brasil é a IURD, igreja-teatro na análise brilhante do Rev. Leonildo Silveira Campos, que atrai multidões sedentas em experimentar o inefável e alcançar o inalcançável, e dita os comportamentos das demais igrejas, necessitadas de fazer frente à terrível concorrência que as assusta e ameaça roubar-lhes os, cada vez menos, fiéis ...
Os novos gostos litúrgicos, nas igrejas históricas, traem a sedução imagética. A imagem apaixona, o espetáculo seduz mentes, corações e corpos, e imperceptivelmente a igreja se transforma em um imenso teatro coletivo; o culto converte-se em arrebatadora performance das coisas que se deveriam esperar. Realidades escatológicas são temporalizadas, capturadas nas agradáveis sensações da confusa presença do sagrado no extasiante consumo dos novos cânticos, novos ritmos, novos gestos, novas palavras de ordem, novos ritos, meios sempre novos para se "performar" os mesmos e velhos ritos da celebração cristã do Crucificado.
As cenas litúrgicas desencarnam a fé, esta, não mais, certeza das coisas que se esperam e convicção das coisas que não são vistas; o êxtase catártico substitui o ouvido atento para ouvir a Palavra de Deus; a emoção teatralmente liberada no espetáculo cúltico reafirma poderosamente a rejeição da racionalidade da fé. No espaço litúrgico se santificam as necessidades humanas de auto-realização, satisfação, consumo, e conquista do ser, pois a realidade se tornou tão crua e violenta, tão escatológica, em sua irrealizável promessa de felicidade plena através do consumo, que só pode mesmo ser mitificada no tempo espiritualizado do encontro coletivo secreto com Deus, e sacrificada no altar das religiosas emoções purificadoras de nossas angústias, sonhos e incertezas.
Em meio a estas novas e sedutoras imagens-realidades, novo papel se descortina aos pastores da Igreja de Deus: o de catalisadores das expectativas dos atentos templo-espectadores; pastores performáticos, imagens visíveis do Deus invisível - homens de sucesso, realizadores de heróicas façanhas espirituais: tombos, curas, sinais, milagres e prodígios. Especialistas em emoções, em novidades litúrgicas, tornam-se, os pastores, em personificações do desejo coletivo mal realizado de consumo; tornam-se, também, cada vez mais exigentes: maiores salários, maiores igrejas, maiores honrarias.
Cuidai de vós mesmos e do rebanho sobre o qual o Espírito vos constituiu bispos!
Esta é a primeira reverberação da voz bíblica. Diante dos desafios que a sociedade do espetáculo proporciona à Igreja, nossa primeira tarefa pastoral é a do cuidado. Cuidem de vocês mesmos! Não aceitem o papel que a pós-modernidade reserva aos líderes religiosos. Não se deixem seduzir pelo sucesso, pela grandiosidade, pelas possibilidades de progresso financeiro.
Acomodem-se às coisas humildes, assim como Jesus é manso e humilde de coração. Construam suas vidas à imagem do Filho de Deus que, sendo igual a Deus, não recuou diante da humilhação da encarnação no mundo cheio de pecado e miséria, assumindo a condição de escravo, a condição mais abjeta dos tempos neo-testamentários. Como Jesus Cristo, solidarizem-se com os excluídos e excluídas de nossa sociedade de espetáculos. Que o seu ministério priorize as pessoas que não contam no mundo das imagens, mas são preciosas diante do Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo.
Resistam às tentações do culto-performance e do ministério-espetáculo. Reaprendam, junto com suas igrejas, a adorar a Jesus Cristo em Espírito e verdade. Em Espírito, porque conduzidos pelo Espírito do Filho, ao amor do Pai derramado em nossos corações, para que possamos estar no mundo como Igreja peregrina e missionária. Em verdade, porque direcionados pela santa expectativa da vinda sempre iminente do Reino de Deus para governar nossas vidas e nosso mundo, transformando-o, de espetáculo pecaminoso, em espaço de salvação. Juntamente com suas igrejas, santifiquem Cristo em seus corações e estejam prontos para responder, a quem perguntar, qual é a razão da nossa esperança. Aos doces imperativos do êxtase e da catarse emocional contraponham o exigente discernimento espiritual, exercício ativo de mentes disciplinadas sob a Palavra, treinadas na contemplação do Deus vivo e verdadeiro, nutridas na reflexão teológica corajosa diante da história cambiante da raça humana alienada de Deus. Sejam, acima de tudo, dignos pastores-mestres do rebanho de Deus! Conduzam suas próprias mentes, as mentes de seus rebanhos e as mentes de todas as pessoas a que vocês vierem servir, à obediência de Cristo; demolindo os falsos argumentos, as fortalezas espetaculares de nossos dias; construindo, com suas igrejas, uma nova mentalidade, gerada e sustentada pela mente de Cristo, em nós infundida, pelo Espírito divino. Aos sedutores apelos do consumo e da paixão religiosa, contraponham o seguimento e a imitação de Jesus Cristo, companheiro de pecadores, leprosos, prostitutas, publicanos ...
A vocês, amigos e colegas na educação teológica, ousem repensar e rever a formação pastoral e teológica, que, como eu, têm buscado novos caminhos, novas soluções para a educação, novas propostas diante dos desafios da pós-modernidade. Não se acomodem ao já conquistado! Ainda é preciso avançar, transformar, ousar verdadeiramente! O vinho novo da ação de Deus no mundo pós-moderno não pode ser contido pelos odres velhos dos moldes tradicionais da educação escolar. Temos de continuar na busca do sopro renovador do Espírito, para nossa tarefa ministerial; na incessante busca da inteligência; da fé; na permanente construção de uma teologia reformada, contextual e missionária; na incansável pesquisa por uma educação participativa, libertadora e construtiva. Permaneçamos na adorável jornada do discipulado cristão, mestres-discípulos que, sentados aos pés do Mestre, ousam sonhar com novos horizontes e trilhar os compassivos caminhos de Cristo nestes dias do mundo pós-moderno.
2. À sociedade de espetáculo, privatizada, individualizada ao extremo, Deus Pai, propõe um diferente tipo de espetáculo, "porque a mim me parece que Deus nos pôs a nós, os apóstolos, em último lugar, como se fôssemos condenados à morte; porque nos tornamos espetáculo ao mundo" (lCo 4,9). A contradição inerente à sociedade espetáculo é que ela torna privatizado tudo aquilo que é público, e público aquilo que deveria ser particular. Que agrada mais a certo tipo de jornalismo do que os dramas e as picuinhas particulares dos ídolos e astros? O que vende mais jornais e atrai maior audiência na TV, do que o conhecimento público dos "segredos" da vida alheia?
Por outro lado, o que menos interessa ao grande público, à opinião pública senão os dramas públicos da exploração da mulher, da violência contra a criança, do abandono dos idosos, da exterminação cruel e cotidiana de milhares e milhares de pessoas famintas, excluídas pelo sistema econômico do acesso à casa, comida, saúde, educação, dignidade? Estes fatos reveladores da pecaminosidade incrustada em nossas miseráveis democracias ocidentais, e presentes também no exótico Oriente, são cuidadosamente mantidos no âmbito do particular. Deles se noticia apenas os números, estatísticas que servem apenas para amortecer consciências, criar um certo desconforto, logo aplacado pelas belas imagens do mercado, grande produtor de riquezas, tecnologia e satisfações imediatas.
Mercado espetacularizado para o grande público, que oculta, com seus longos e grossos tentáculos, todas as imagens que revelam sua sede assassina, transvestindo-a de eficácia, progresso e globalização. Mercado à, cuja sombra, inadvertidamente, as Igrejas Cristãs tendem a se ocultar, aceitando o jogo da privatização dos afetos religiosos. O Deus Criador é devidamente embalado e consumido nas festas prive das comunidades cristãs auto-suficientes e isoladas, em sua cruzada contra tudo e todos, sem nem sequer discernir onde estão os verdadeiros alvos e desafios da nossa luta em prol e sob o Reino de Deus.
Igrejas que se deixam enlevar pela sedução do maravilhoso, do angelical, do errático mundo de espíritos conquistadores, de batalhas gloriosamente travadas nos recônditos seguros de templos e de corações seguramente separados das duras realidades do cotidiano da opressão, exclusão e afastamento de Deus. Comunidades que se protegem no âmbito privado, reduzindo a f é a questões de crença e emoção, novas sensações e experiências, doutrinas e normas, crentes e incrédulos, os de dentro e os de fora.
A estas igrejas, irmãos, apascentai, Igreja de Deus, amada e consagrada pelo Filho
A fé cristã é pública, sua arena não é o templo, não é o coração, não é a doutrina, não é a denominação. Sua arena é o mundo! Não o abstrato mundo composto de falsas doutrinas, espíritos enganadores, ou religiões concorrentes e anti-cristãs. O mundo, que é nossa arena, é o mundo amado inefavelmente por Deus. O mundo composto de pessoas reais, visíveis e palpáveis. Pessoas com cores, gostos, cheiros, modos e tons particulares, individuais, mas construídos publicamente nesta imensa sociedade anônima chamada Brasil.
Diante deste mundo Deus nos colocou, a nós, ministros do Evangelho, como espetáculo. Portadores do "morrer de Cristo pela humanidade" a fim de que a vida de Cristo se manifeste nos moribundos e abjetos, corpos ignorados pelo deus capital e seus profetas, mercado e mídia. A vocação pastoral é vocação pública. Nossa paróquia não é a IPIB, a IPB, ou qualquer outra denominação. Nossa paróquia é o mundo. Nossas igrejas só têm sentido à medida em que são igrejas missionárias, enviadas ao mundo como o Filho foi enviado pelo Pai. Nossos ministérios só terão valor se forem ministérios que tornem público o escândalo da cruz e a loucura da pregação. Resistam, portanto, à tentação do provincianismo ministerial, à rotinização da vida que uma igreja local, ou um seminário, ou um CTM (?) podem proporcionar a nós, ministros do Evangelho. Resistam à tentação da teologia fácil, barata, amplamente difundida em mensagens apaziguadoras de consciências e acalentadoras de desejos de tranqüilidade e consumo.
Assumam o morrer de Cristo em seus corpos, corações e mentes. Revistam-se do poder da graça de Deus; poder que se aperfeiçoa em nossa fraqueza, em nossa humildade, em nossa submissa rendição ao Espírito de Cristo, que caminha por entre os bailes da vida, entre os bares, esquinas e praças. O Espírito que revela o amor do Filho, amor escandaloso que Lhe custou a morte de cruz; amor herege e subversivo como foi condenado pela religião e pelo Estado de sua época. Espírito profético que faz queimar em nossos peitos a irresistível vocação de tornar público o profético Evangelho de Cristo, a boa-nova do Reino de Deus, a auspiciosa mensagem da graça transformadora e recriadora de Deus.
Os imperativos do Evangelho do Reino de Deus exigem um ministério pastoral forte, criativo, discernidor dos sinais dos tempos, mas, acima de tudo, compassivo e solidário com pobres e pecadores. Ministério público, realizado como espetáculo do morrer salvador de Cristo perante a sociedade anestesiada pelas assépticas imagens do bem-estar e da auto-realização. As ternas misericórdias da Salvação exigem uma educação teológica vibrante; menina, em seu afã de jamais se render às institucionalizações descontextuais; adulta, em sua reflexão na busca de uma práxis cristã fiel ao conselho de Deus; teimosamente construtora da inteligência da fé nestes dias do mundo pós-moderno.
Ministério pastoral e teológico que ajudem a Igreja a ser sal da terra e luz do mundo. Que, juntamente com o Povo de Deus, experimentem, desbravem novos caminhos para salgar este mundo insosso e nauseante em que vivemos. Ensino e pastorado que conduzam a Igreja de Deus, comprada com o sangue de Cristo, ao serviço ao mundo e no mundo. Igreja de Deus chamada para ser sal e luz, para brilhar em meio às trevas da exclusão, do consumo, da desumanização, da globalização tecnológica. Luz, farol altaneiro que reconduza a humanidade ao porto seguro da reconciliação com Deus. Sal, tempero agradável, que torne sábias as palavras e ações dos cristãos no mundo ignorante do progresso sem solidariedade e compaixão.
Ensino e pastoreio que ajudem a Igreja a ser espetáculo, e não a consumir espetáculos cúlticos, doutrinários, pastorais, teológicos, ou seja lá de que espécie forem. Igreja-espetáculo, mãe dos aflitos, irmã de excluídos e excluídas. Igreja cidadã do Reino de Deus, corajosamente peregrina com Cristo, fora do arraial seguro da celebração e nutrição da fé, mas, por elas vocacionada e impulsionada ao mundo, que Deus é amor e pelo qual entregou Seu próprio Filho à morte, e morte de cruz. Sim, irmãos e irmãs, Igreja missionária, ajuntamento solene e feliz de ministros e ministras do Evangelho; comunidade celebrativa e estudiosa, reunião de homens e mulheres que têm em Cristo os olhos fitos, seguindo seus passos no lar, na escola, no trabalho, no lazer. Homens e mulheres de Deus, ordenados e não-ordenados, que realizam a santa aventura de levar as boas novas ao mundo, na construção de uma nova práxis, prática, eficaz, mas, sem nenhum receio; amiga da reflexão teórica, companheira da teologia que nasce do discernimento espiritual e ajuda o povo de Deus a caminhar nos passos de Jesus, o amigo de publicanos, meretrizes e pecadores.
Conclusão
"Guardai a vós mesmos e ao rebanho sobre o qual o Espírito vos constituiu bispos, para apascentardes a Igreja de Deus, a qual ele comprou com o seu próprio sangue". A todos nós o chamado de Deus prepara um novo e vivo caminho; seja em novos lugares, seja nos antigos e conhecidos espaços. Não resistamos ao apelo do Espírito que faz novas todas as coisas. Não confundamos o sopro renovador do Espírito com o errático mover de espíritos das trevas e da ignorância. Não aprisionemos o Espírito criador nos velhos moldes de nossas instituições e rotinas de vida. Guardai a vós mesmos. Guardemo-nos irmãos! Guardemo-nos do sucesso fácil, da emoção recompensadora, da reflexão sem práxis. Guardemo-nos do ministério cômodo e tranqüilo de mantenedores do status quo. Guardemo-nos, acima de tudo, como humildes seguidores de Cristo, eternos discípulos do Bom Mestre, o único que é digno de receber a honra e a glória, a força e o poder. Ao rei eterno, imortal, invisível, sejam santificadas nossas vidas, nossos corpos, nossos corações e mentes.
A Ele, Senhor da Igreja, seja consagrado nosso ministério!
Prof. Júlio Paulo Tavares Zabatiero diretor de pós-graduação da Faculdade de Teologia Sulamericana
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